Cezar Peluso, que se despede da Presidência do STF esta semana, revela aqui que o grande padrinho para sua nomeação como ministro, apesar do esforço do então ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, foi o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
A respeito de uma grande curiosidade da comunidade jurídica — se o ministro Joaquim Barbosa assumirá ou não o comando do tribunal — Peluso não duvida: “O Joaquim assume sim (...) Ele não recusará a Presidência do tribunal em hipótese alguma”. Problemas na coluna ele não tem, informa o ministro, baseado em informação do especialista Paulo Niemeyer. Peluso só receia pela capacidade do colega de bem relacionar-se com os demais ministros e com os advogados, em virtude de sua insegurança.
Neste quarto capítulo de sua entrevista, que começou a ser publicada no domingo, o ministro fala de sua preocupação com a onda populista que varre o Judiciário brasileiro e prevê que o STF tende a posicionar-se cada vez mais alinhado com a opinião pública. Ele lamenta não ter conseguido implantar um sistema de “consultas prévias” entre os ministros, para tornar as sessões mais céleres e evitar bate-bocas desnecessários, mas gaba-se de ter apaziguado a casa e reduzido, em sua gestão, as brigas que expunham o tribunal.
Sobre a corrupção, assunto de 90% das manchetes da imprensa brasileira, Cezar Peluso não esconde sua opinião: “A corrupção é um produto desta sociedade”. Ainda esta semana o site passa a publicar depoimentos e artigos sobre a passagem de Peluso pelo STF.
Leia a surpreendente entrevista do presidente do STF:
ConJur — Qual seu legado nesses curtos dois anos de Presidência?
Cezar Peluso — Melhorei a máquina administrativa do Tribunal, que é algo que não aparece, não são obras com placa de inauguração. Tomamos uma série de medidas importantíssimas na área administrativa, sobretudo na questão dos processos de repercussão geral. Esse é um instituto novo, não estava regulamentado. Essas medidas administrativas foram no sentido da ligação do Supremo com os demais tribunais. Pois essa, digamos, "ferramenta" da Súmula Vinculante tem um aspecto bastante complexo e é nesse contexto que precisamos da regulamentação, da criação de procedimentos. Fomos aos poucos regulamentando, criando mecanismos administrativos para dar feição a essas ideias. Terminamos uma rodada de reuniões na sexta-feira (23/03) com os presidentes e vice-presidentes e servidores dos tribunais do Brasil inteiro para afinar a sintonia com o Supremo. Existem temas repetitivos dos tribunais estaduais e locais que podem sobrestar, e que estão esperando uma uniformização por parte do STF, e isso pode criar dúvidas. Esse assunto é complexo. Iremos dar total transparência para a situação desses processos no site do STF. O cidadão poderá acessar esses processos e verificar onde estão e há quanto tempo estão, que decisões foram tomadas, o que está acontecendo. Qual o seu número e quando estão pautados para entrar em julgamento. É uma radiografia total da situação, dentro do Supremo, em relação a cada ministro e ao plenário. Além de ser transparente, para advogados em particular, mas para qualquer cidadão, esse é um instrumento de gerenciamento que irá permitir, por exemplo, saber que um processo que trata de matéria específica deu entrada cinco anos atrás e é necessário dar prioridade a ele. Antes não havia isso. Ninguém sabia. Ninguém tinha acesso aos processos em andamento do STF, nem se fez levantamento tão minucioso. O futuro presidente do STF receberá agora esse legado, terá esse material e levantamento histórico na mão e poderá estabelecer prioridades. Esse instrumento de gestão é importantíssimo.
ConJur — Trata-se de criar um banco de dados no Supremo?
Cezar Peluso — Exato, e isso é algo que antes não havia. Hoje, praticamente não se trabalha mais com papel, tornamos praticamente definitivo o processo eletrônico. Todos os processos originados no Supremo, ações de inconstitucionalidade, habeas corpus, tudo hoje é eletrônico. Não se aceita mais nada em papel, exatamente para implantar o sistema eletrônico. Temos até cálculos, nessas informações, da economia de tempo, gerando eficácia.
ConJur — Há pouco o STF julgou um processo de 1953.
Cezar Peluso — Sim, fui o relator. Esse processo sofreu uma série de vicissitudes fortuitas. Aconteceu praticamente tudo o que se pode imaginar. Primeiro por envolver uma transação absolutamente gigante, pois o estado de Mato Grosso doou um mundaréu de terras divididas entre várias empresas colonizadoras. Era uma extensão duas vezes maior que o estado do Sergipe. A área de terra é de 42 mil quilômetros quadrados. Distribuiu para duas dezenas de colonizadoras com a obrigação de que ocupassem o território e o desenvolvessem. As colonizadoras fracionaram esses terrenos imensos, venderam lotes, foram criadas cidades, estradas, hospitais, abrindo lavouras, enfim, estimulando o desenvolvimento da região dentro do programa Marcha para o Oeste do governo Getúlio Vargas. Essa era uma parte do programa, mas o estado do Mato Grosso se esqueceu de que a Constituição de 1946 exigia que, para realizar essas doações ou concessões de domínio, o estado deveria pedir autorização para o Senado. Eles não pediram essa autorização e em 1953, quando se iniciou a demanda, já fazia anos que aquilo estava em andamento e execução. A União resolveu entrar com uma ação para anular essas concessões e se criou um problema de grandes dimensões, pois naquela altura não eram mais apenas aquelas duas dezenas de colonizadoras. Elas haviam vendido as terras para milhares de pessoas.
ConJur — Sobretudo a colonos vindos dos estados do Sul do país.
Cezar Peluso — Sim, era agora uma questão de propriedades particulares, as empresas vendiam os lotes em cotas, trouxeram gente do sul, o agricultor comprava o lote, às vezes não se adaptava ou não dispunha de conhecimentos técnicos para realizar exploração e acabava vendendo para terceiros. E aí temos uma sucessão de proprietários e todas essas pessoas tinham de ser citadas no processo, afinal era a propriedade deles que estava em jogo. Imagine citar esse mundo de gente envolvida, e isso foi passando pela mão de vários ministros. Quando estava mais ou menos pronto para esse processo ser julgado anos atrás, se percebeu que faltava citar outros proprietários originais, que não se sabia onde estavam. Aí retomaram as diligências para corrigir a falha. Houve uma época em que a União percebeu que esse era um processo irreversível, na verdade tratava-se da dinâmica de urbanização, colonização e ocupação do território brasileiro, uma situação irreversível. Não seria possível voltar atrás na construção de vilas, cidades. A União desistiu do processo, isso não foi homologado e, portanto, o processo continuou. Quando assumi, tomei as últimas providências para que esta Ação Civil Originária 79 fosse julgada, pois era o processo mais antigo em andamento no Supremo. Fizemos o julgamento na semana passada. Quero ir embora, mas quero resolver essas histórias.
ConJur — Mas os ministros Lewandowski, Marco Aurélio e Ayres Brito não entenderam assim a questão, afinal, parece que não foram exatamente os pobres de Mato Grosso os principais beneficiários. Marco Aurélio disse que se estava jogando a Constituição no lixo.
Cesar Peluso — O problema é que o tribunal entendeu — e a meu ver com toda a razão, e propus isso — que desfazer hoje essa concessão, que tem mais de 60 anos, um erro do começo dos anos 1950, implicaria teoricamente destruir cidades, aeroportos, seria uma situação indescritível. Isso seria um despropósito sobre uma situação que está consolidada e que é irreversível. A terra voltaria para o estado de Mato Grosso? Hoje o estado está dividido. Acho que foi uma solução sensata do Tribunal.
ConJur — Como é ser ministro em Brasília?
Cezar Peluso — Ser ministro é muito honroso, sem dúvida. Mas é muito penoso, em termos de serviço. A gente não tem hora. Antes eu achava que trabalhava muito, de sábado, domingo. Mas aqui em Brasília o volume de trabalho não é possível explicar, só vivendo. Há 30 funcionários no meu gabinete, como se fosse uma pequena empresa. São seis assessores, analistas de diversos graus que organizam, recolhem materiais, para que eu possa estudar os processos. Quando cheguei ao STF, peguei 12 mil processos à minha espera. As sessões são às terças, quartas e quintas. Elas começam às 2h da tarde e não têm hora para terminar.
ConJur — Como foi a convivência com personagens tão díspares como os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa ou Nelson Jobim?
Cezar Peluso — São ministros oriundos de áreas de diversas e isso é importante, eles têm ricas contribuições, com pontos de vista diferenciados. Veja o caso do ex-ministro Nelson Jobim: ter vivência da área política foi seu grande diferencial. O que alguns acham que era uma falha do Jobim na verdade era sua grande qualidade. Como ele veio da área política, havia a impressão de que lhe faltava compromisso com o Judiciário. Pelo contrário, é um homem dotado de grande espírito público. Sua atuação na Presidência do STF me surpreendeu, ele quis marcar sua administração por um avanço significativo da função do Judiciário. E justamente por não ter vícios de origem e espírito de corporação exerceu a visão global, foi aberto para compreender as preocupações das diferentes áreas. Isso foi importante e fez a diferença. Ele presidiu o tribunal numa época crucial de mudanças no Judiciário, e isso não poderia ter sido conduzido de modo melhor, pois o Jobim tinha exatamente a visão política do todo, de não ficar preso a miudezas do dia a dia do Judiciário. Ele foi capaz de chegar ao macro e perceber os pontos de estrangulamento do Judiciário. Não é que apenas a questão de que o juiz trabalhe pouco, ou porque tem pouco juiz em um determinado estado, o problema tem outros vieses. E ele fez levantamento de tudo isso.
ConJur — Como, por exemplo, o excesso de recursos e demandas que o próprio governo cria?
Cezar Peluso — Não é só o governo. O Jobim fez um levantamento no Rio de Janeiro identificando um grupo de empresas que se serve do Judiciário para ganhar tempo em determinadas causas que sabem que terão de pagar; mas com a demora, aplicam o dinheiro e acabam lucrando. Um escândalo. Usam o Judiciário para tirar proveito, sabem que demorar a pagar é mais rentável. E isso paralisa o Judiciário.
ConJur — Como é ver o sistema do Judiciário e da Justiça desde o centro do país? O que mudou em sua percepção?
Cezar Peluso — Sou muito ligado à Justiça estadual, que é a Justiça mais próxima do povo, do cidadão, sem dúvida. Preocupo-me com ela e suas reivindicações. Mas também sou um crítico da Justiça estadual, conheço sua realidade, sei os pontos que deveriam ser mudados. Mas daqui de Brasília, a percepção muda ao ver que as coisas são mais graves do que se percebia quando estava em São Paulo. Há um problema na Justiça de São Paulo, gravíssimo, que é a falta de recursos. Agora, tirando isso, a Justiça de São Paulo é modelar. Mas no âmbito nacional, há problemas graves, sobretudo nas regiões mais longínquas. Uma das coisas que me convenceram a aderir à proposta do Conselho Nacional da Justiça no período de sua implantação foi haver convivido mais de perto com esses sérios problemas da Justiça no Brasil como um todo.
ConJur — E havia a discrepância gritante em termos de salário.
ConJur — São Paulo é o estado que pior paga a seus juízes. E há outra distorção: o número de entrâncias, de degraus, é enorme. Na Justiça Federal são duas ou três. Então, há uma diferença maior de vencimentos entre os diferentes níveis. Tive alunos, na época em que lecionava na PUC-SP, que passaram nos dois concursos, para juiz estadual e federal, e disseram: “professor, não tem jeito, gosto muito da Justiça estadual, mas não dá”. E essa situação não depende do Judiciário, mas do Executivo estadual, que precisa ter maior sensibilidade para isso. No longo prazo, o Executivo degrada a qualidade dos quadros funcionais da magistratura do estado.
ConJur — Alguns pesquisadores dizem que não é o CNJ que resolverá o problema do Judiciário, mas sim uma injeção maciça de dinheiro para informatizar, adequar, melhorar as instalações.
Cezar Peluso — Eu mesmo fiz críticas como essa. Essa censura que me fazem, dizendo que mudei de ponto de vista, é injusta. Sempre fui claro. Examinando a crise do Judiciário, achava que a criação do Conselho era um instrumento válido, mas não o principal para resolvê-la. Os problemas macro do Judiciário são dois: o primeiro é a demora excessiva. Embora haja demora no mundo inteiro, aqui ela não é razoável. O segundo é a grande massa da população sem acesso ao Judiciário. Os marginalizados, os excluídos da cidadania, não sabem de seus direitos. E mesmo que soubessem, não têm instrumentos para viabilizar o acesso ao Judiciário. Pois o sujeito que mora na roça, ou na periferia, não tem acesso a um advogado, que mora ou atua no centro da cidade. A organização estatal de assistência judiciária é precária. Alguns estados ainda não se moveram para efetivar as defensorias públicas. A Justiça funciona basicamente para a classe média e para um grupo de empresas. Porque até as grandes empresas já não vão ao Judiciário, só em alguns casos. Preferem arbitragens em escritório de advocacia. Essa é a grande questão da Justiça, ser uma Justiça para todos. Mas, repito, não se pode falar em reforma séria do Judiciário sem tocar no orçamento. São Paulo, que do ponto de vista econômico é o estado mais forte, só agora está começa a informatizar seu tribunal. Não por negligência da direção do tribunal, mas por absoluta falta de dinheiro.
ConJur — Qual foi o momento de mais felicidade como ministro do STF?
Cezar Peluso — Fora o momento da posse, nada de excepcional. Acho que nós julgamos assuntos muito importantes, alguns julgados rapidamente atendendo as demandas da sociedade, o Supremo respondeu bem a essa demandas, sobre a união homoafetiva, a diversidade de opinião, a lei de imprensa, tivemos 15 ou 20 decisões de grande repercussão social. O que me deixou de consciência tranquila é que, de certo modo, o tribunal se apaziguou um pouco durante minha gestão. Sabemos dos diálogos exacerbados entre os ministros, que aconteceram no passado. Durante minha gestão isso não aconteceu em nenhum momento. Tentei conduzir as reuniões do Plenário de uma maneira tranquila, de alto nível. Não houve nenhum episódio que relembrasse os atritos anteriores. Acho que minha moderação na direção do Supremo ajudou a refrear um pouco o entusiasmo ou o estado de ânimo, permitindo que o tribunal decidisse sem se expor. As brigas anteriores expunham muito o tribunal. Além da parte administrativa, que a gente fala que é a parte subterrânea, que não se vê, está tudo organizado. A Central do Cidadão é algo importante e eficiente, atende qualquer demanda, as coisas andam rapidamente. Do ponto de vista interno do funcionamento do tribunal, demos passos importantes. Claro que alguns problemas ficam fora do nosso controle. Como presidente do Supremo, não tenho tanto poder assim. E defendi as prerrogativas do Supremo naquele confronto com a Presidência da República na questão do orçamento. A Presidência descumpriu a Constituição, como também descumpriu decisões do Supremo. Mandei ofícios à presidente Dilma Rousseff citando precedentes, dizendo que o Executivo não poderia mexer na proposta orçamentária do Judiciário, que é um poder independente, quem poderia divergir era o Congresso. Ela simplesmente ignorou. Aí fomos obrigados a tomar atitudes públicas de defesa, o que gerou aquela confusão toda no ano retrasado.
ConJur — E qual foi a conclusão?
Cezar Peluso — Isso foi para o Congresso e ele resolveu ignorar o Judiciário, pois o governo tem a máquina da maioria.
ConJur — Esse parece ser o problema maior do sistema brasileiro, manter a maioria.
Cezar Peluso — E o Congresso ensaiou tomar atitude de certa independência. Vários líderes, tanto do Senado como da Câmara, vieram dizer que iriam aprovar nosso orçamento contra a vontade do Palácio do Planalto. Na época, o Arlindo Chinaglia (deputado federal do PT-SP), que era o relator do orçamento, esteve comigo, ele não falou diretamente, mas deu a entender que tomaria uma atitude de independência. Mas o poder de fogo do Executivo é grande, eles acabaram não tomando atitude, curvando-se ao "toma lá, dá cá". Temos um Executivo muito autoritário. É um Executivo imperial, não é um executivo republicano.
ConJur — Seria resultado de uma Constituição que começou inspirada no Parlamentarismo e se transformou em Presidencialista, até por pressão do Executivo, na época, o governo Sarney?
Cezar Peluso — É uma Constituição inspirada em alguns princípios parlamentaristas, mas aplicados num regime presidencialista e com caráter autoritário. Não dá muito certo, não. Mas me foi perguntado o que me deixou feliz, sem me arguir sobre minhas frustrações. E uma delas foi não ter conseguido implantar um sistema de conversas e consultas prévias antes dos grandes julgamentos. Há um projeto de emenda regimental que não quis apresentar ainda, que propõe fazer reuniões prévias e reservadas para discutir um assunto antes do julgamento, para evitar ficar “batendo boca” durante a sessão. Isso seria fundamental. É trocar ideias, não é querer fazer conchavos. É expor a opinião, uma discussão preparatória para depois cada um tomar a decisão em reservado. Não fazemos isso e vamos para o plenário e aquilo vira aquele “furdunço”. Muitas vezes até se percebe que o sujeito esta formando um raciocínio durante a discussão.
ConJur — No começo de sua administração, o senhor não compartilhava seus projetos, como a PEC dos Recursos.
Cezar Peluso — É uma opinião minha, e a considero acertada. A reação contra a PEC não é uma reação de lógica jurídica ou socioeconômica, é uma reação de certo viés corporativista por parte de advogados beneficiários da indústria dos recursos, da protelação e de ciúme intelectual. A causa principal dos atrasos dos processos no Brasil é a multiplicidade de recursos e, especificamente, o nosso sistema de quatro instâncias. A PEC só não foi votada porque o Dornelles complicou. Quem o senador Francisco Dornelles representa? Ele é do PP (Partido Progressista) ou do BB, dos bancos e bancas? Estes são os grandes interessados na discussão do sistema. O Dornelles é senador pelo Rio de Janeiro, mas de fato representa os interesses dos bancos e representantes das grandes bancas de advocacias de Brasília. Ele travou a votação da PEC. Mas todo mundo está insistindo com ele para acabar logo e Marta Suplicy diz que irá votar agora na Comissão de Constituição e Justiça. Vai fazer audiência e colocará para discutir. A maioria do Senado é favorável à PEC 15. Não propus em nome do Supremo, dei uma ideia e o senador do Espírito Santo Ricardo Ferraço (PMDB) foi lá e pegou a minha ideia, nem me perguntou ou consultou, apresentou a PEC e veio trazer a cópia. Eu disse: “Mas não é isso o que eu tinha em mente”. Aí o senador Aloysio Nunes Ferreira, que é o relator, restabeleceu o meu pensamento. Aí o substitutivo do Aloysio é exatamente o que eu pensava.
ConJur — Num congresso coalhado de advogados o senhor acha que passa?
Cezar Peluso — Passa, passa, porque a lógica é irrefutável. Na maior parte dos países são duas instâncias, excepcionalmente na Comunidade Europeia, em que o conselho recomenda que “se estabeleça uma terceira instância só em casos excepcionais”. Na Europa, a maioria é duas.
ConJur — O que o senhor fará depois de aposentado?
Cezar Peluso — Vou dar uma resposta absolutamente sincera: não sei ainda. Não estou preocupado. Estou absolutamente preparado.
ConJur — Se a PEC dos 75 anos passasse amanhã, o senhor ficaria?
Cezar Peluso — Não sei mais. Antes eu ficaria, agora não sei mais. A minha cabeça está pronta para ir embora.
ConJur — O TJ do Rio tem um serviço de acompanhamento psicológico para juízes que se aposentam.
Cezar Peluso — (risos) Tivemos um caso aqui em São Paulo, o do Flávio Torres, um desembargador famoso, não tinha filho, ele não fazia outra coisa na vida a não ser viver para o tribunal. Se aposentou e, dias depois, teve um enfarte fulminante. O desembargador Yussef Said Cahali teve um derrame. Ele perdeu ao mesmo tempo o cargo de desembargador e a cadeira na faculdade, por haver chegado à idade limite.
ConJur — O senhor se preocupa com o futuro do STF?
Cezar Peluso — Irei sair do tribunal daqui a pouco e me preocupo sim com a sucessão. Outro dia, alguém falava sobre o sistema de indicação. Mas não existe isso de "sistema melhor de indicação". A qualificação é importante, mas algumas indicações podem ser preocupantes em relação ao que irá acontecer.
ConJur — Com as oscilações de saúde, o ministro Joaquim Barbosa assume após o ministro Ayres Brito?
Cezar Peluso — O Joaquim assume, sim. Viram como ele está comparecendo ao Plenário? Teve uma melhora grande, antes quase não aparecia. Agora, comparece a todas as sessões. Ele não recusará essa Presidência em circunstância alguma, pode ficar tranquilo. Tem um temperamento difícil, não sei como irá conviver, primeiro com os colegas. Não sei como irá reagir com os advogados, pois tem um histórico desde o episódio com o Maurício Correia [ministro aposentado do Supremo. Em 2006, Joaquim Barbosa, no Plenário, sugeriu que o então presidente do STF fazia tráfico de influência]. Também não sei como irá se relacionar com a magistratura como um todo. Isso já é especular. Ele é uma pessoa insegura, se defende pela insegurança. Dá a impressão que de tudo aquilo que é absolutamente normal em relação a outras pessoas, para ele, parece ser uma tentativa de agressão. E aí ele reage violentamente.
ConJur — A insegurança para o debate o faz resistir aos advogados?
Cezar Peluso — A impressão que tenho é de que ele tem medo de ser qualificado como arrogante. Tem receio de ser qualificado como alguém que foi para o Supremo não pelos méritos, que ele tem, mas pela cor.
ConJur — Mas ele tem problema com a coluna?
Cezar Peluso — A coluna dele é perfeita, não tem nada de errado, ele tem problema nos quadris. O especialista Paulo Niemeyer no Rio diz que ele não tem problema na coluna, tem problema no quadril. Mas o certo é que alguma coisa ele tem, mesmo. Ter de ficar de pé, ficar tanto tempo de licença...
ConJur — E quanto aos demais ministros?
Cezar Peluso — O Gilmar Mendes tem ambições acadêmicas, acho que não irá ficar muito tempo no tribunal. Talvez ele se decepcione com o andamento da Corte, mas são conjecturas. Ele é o último indicado pelo Fernando Henrique Cardoso. O ministro Celso de Melo está ameaçando sair faz tempo. Não sei até quando fica.
ConJur — Acha que o Supremo irá encolher em importância?
Cezar Peluso — Não sei o que irá acontecer, mas é preocupante. Há uma tendência dentro da corte em se alinhar com a opinião pública. Dependendo dos novos componentes.
ConJur — O clamor social é o clamor da mídia. A sociedade quer linchamento. A sociedade não é contra a corrupção, ela é contra a corrupção do outro.
Cezar Peluso — A corrupção é um produto desta sociedade. O que me chamou a atenção e me fez entender uma série de coisas, foi quando li uma pesquisa realizada há uns três ou quatro anos, uma consulta feita entre jovens de 16 a 21 anos. Uma das perguntas era: você, para subir na vida, ser bem sucedido economicamente, seria capaz de fazer qualquer coisa do ponto de vista ético? E esses jovens responderam que sim. Uma sociedade com uma juventude que não vê limites éticos nem morais para ser bem sucedida economicamente só pode resultar em uma sociedade de corruptos. Os corruptos não nascem por geração espontânea ou de ETs e discos voadores.
ConJur — O repórter da TV Globo se fez passar, com anuência do diretor de um hospital do Rio de Janeiro, por chefe de compras da instituição, entrevistando várias pessoas. E o Código de Ética do Jornalista Brasileiro diz que o repórter não pode utilizar o recurso da falsa identidade.
Cezar Peluso — Na área penal, chama-se de flagrante preparado. O sujeito prepara um flagrante para induzir a pessoa a cometer o crime. Não é crime. O que notei nessa crise toda é que a Folha de S.Paulo, e isso me espantou muito, quando repercutia uma série de queixas do conselheiro Marcelo Nobre sobre o CNJ, não identificava a fonte. Isso contrariava os princípios da Folha. Ou o repórter sabe por ciência própria ou ele tem de dizer qual é a fonte. O repórter escreveu: “conselheiros falavam”. Quem? Nunca citaram os nomes.
ConJur — O senhor está em excelente forma física.
Cezar Peluso — Jogo tênis e faço musculação.
ConJur — Com quem do Supremo já jogou tênis?
Cezar Peluso — Ninguém de lá sabe jogar tênis. Então, contrato um professor e em todos os dias e horários marcados ele esta lá. Quando os amigos combinam de ir jogar, geralmente o outro não vai e não dá para praticar sozinho. Então acho mais prático contratar o professor.
Momentos decisivos, a nomeação para o STF
A esposa do presidente, Lucia de Toledo Piza Peluso, chega em casa acompanhada de uma amiga e participa por alguns momentos da conversa. Comenta-se sobre uma eventual aprovação da PEC dos 75 anos (Proposta de Emenda à Constituição 11/2005, que altera de 70 para 75 anos o limite de idade para a aposentadoria compulsória de servidor público), um projeto irrefutável, pois quando esse teto foi estabelecido, há mais de 50 anos, a expectativa de vida dos brasileiros era de 55 anos. Hoje ela está em 73,5 anos. A aposentadoria compulsória de servidores públicos dispensa uma mão de obra qualificada. E levando em conta que só fica na ativa quem quiser, ela não provocará mal a ninguém.
ConJur — A senhora acha que, se fosse aprovada a PEC dos 75 anos, o ministro Peluso deveria continuar no STF?
Lucia Peluso — Tem tanta coisa que ele poderia fazer! Acho que para o Supremo será uma perda.
ConJur — Como descreve a carreira dele?
Lucia Peluso — Foi uma carreira construída passo a passo. Ele se fez sozinho, um homem determinado que desde a época de estudante sempre foi vocacionado. Ele já estudava, fazia faculdade pensando em ser juiz. Ele se preparou arduamente, varava noites, madrugadas estudando. Eu o conheci na faculdade. [Peluso intervém: "Lúcia foi minha caloura, quase dei trote nela" (risos)]. Foi com empenho e dedicação que ele construiu a carreira. Fez isso com sacrifico pessoal e familiar. Fez concurso logo que atingiu a idade exigida na época, pouco após sair da faculdade. Entrou no primeiro concurso de que participou e foi para o interior, com filho pequeno, com todas as dificuldades que havia naquela época. São Sebastião não tinha estrada. Em dia de chuva, era aquele lamaçal. Mas ele nunca desanimou. E depois fomos para a divisa com Minas, Igarapava, terra vermelha roxa, não tinha nada, era quase uma cidade fantasma. Foi presidente do orfanato. Era uma comarca que ninguém queria. Mas ele deixou a sua marca. Depois, veio para São Paulo. Ele construiu a carreira sozinho, nunca teve ninguém para ajudar. Não teve parente ou um figurão.
ConJur — A senhora já presenciou alguma grosseria por causa de voto ou decisão dele?
Lucia Peluso — A gente escuta comentários de pessoas, não de amigos. Uma vez houve uma votação do Supremo tendo como tema uma causa que era do interesse do governo. E eles decidiram a favor, pois era a decisão que concretamente o Cezar achava que deveria tomar. Estávamos voltando de Brasília para passar o final de semana em casa, e já no ônibus do aeroporto a caminho do avião, ele estava em pé e segurava a minha mão, veio uma pessoa e comentou com o acompanhante “Viu a decisão do Supremo hoje?”. E nós dois com cara de paisagem. O outro retrucou: “O que você queria? São todos ministros comprados pelo Lula” [risos]. Não fomos reconhecidos, mantivemos a mesma cara de paisagem.
ConJur — Ministro, como o senhor vê isso, no seu caso: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter nomeado uma pessoa do lado oposto de seu arco ideológico?
Cezar Peluso — Isso que irei dizer é uma interpretação puramente subjetiva de minha parte. No começo, o Marcio Thomaz Bastos (advogado e ex-ministro da Justiça) estava bancando o meu nome com certa força, pois ele me conhecia de longa data. Mas houve um momento em que até ele achou que a minha candidatura tinha ido por água abaixo. Acho, e que isso fique claro, que o Dom Paulo Evaristo Arns escreveu uma carta que foi decisiva. Houve a carta. Foi um apoio importante, pois ele me conhecia, havíamos participado de vários encontros, no grupo de juízes na época do regime autoritário. Como já contei, nos reuníamos periodicamente com várias pessoas, leigas e padres também, para discutirmos a realidade brasileira. Várias vezes levei o Dom Paulo para casa depois dessas reuniões, e íamos discutindo assuntos daquele momento. Mas concorria comigo para a vaga do STF um juiz ligado à Associação dos Juízes pela Democracia [o juiz, hoje desembargador Dyrceu Aguiar Dias Cintra Jr.], que tinha apoio de toda a esquerda, até do MST, ele era ligado ao PT. O Lula ficou sensibilizado com isso. O que eles fizeram? Um amigo ou amiga desse juiz conseguiu uma carta de apoio do cardeal endereçada ao Lula.
ConJur — O que deve ter sensibilizado ainda mais.
Cezar Peluso — Então, o desembargador [Antonio Carlos] Malheiros soube disso e veio me contar. Segundo seu entender, o cardeal, como homem bondoso, endereçou a carta, pois não iria falar o contrário e nem falar mal de ninguém. Então, o Malheiros sugeriu que eu contasse essa história para um padre conhecido seu: “O cardeal precisa tomar uma atitude e ele não quer tomar. Ele disse que não queria se envolver mais nessa história”. Tive o encontro com esse padre, conversamos. E esse padre foi até o cardeal, segundo o Malheiros me contou depois: “Vossa eminência sempre falou que devemos ser fiéis à verdade, e o senhor se colocou em uma situação ambígua. Então, é preciso dizer ao presidente Lula e deixar claro que o seu candidato é o desembargador Peluso”. O Dom Paulo Evaristo Arns então escreveu essa segunda carta, que não cheguei a ler. Mas fiquei três meses em uma tensão tremenda, não conseguia trabalhar, o dia inteiro recebia telefonemas: “Está nomeado”, “Não está nomeado”, “Fulano está apoiando”. Foi um inferno!
ConJur — Qual o momento mais constrangedor como presidente do STF?
Cezar Peluso — (Longa pausa.) Passei por um momento muito difícil e constrangedor com a morte da magistrada do Rio de Janeiro (juíza da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, Patrícia Acioli). Considero um momento grave na função de presidente do Supremo e do CNJ.
ConJur — E qual foi o momento de pura felicidade, em que se sentiu em estado de graça?
Cezar Peluso — Quando tomei posse na Presidência e revi pessoas que jamais pensei que iria rever na vida. Compareceu o meu diretor do Colégio Estadual Arnolfo de Azevedo, de Lorena. É um homem muito inteligente, e avançadíssimo no seu tempo. Ele era socialista naquela época. Esteve lá para me cumprimentar e me enviou uma carta, relembrando meu tempo de aluno. Vieram uma professora de Portugal, que é muito amiga, dois representantes da Corte portuguesa. Família, amigos, alunos... Foi um momento de pura emoção, um momento irrepetível.
*Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2012