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CNJ deve rever definições de metas para o Judiciário

Neste momento em que os dirigentes do Poder Judiciário se reuniram no VII Encontro Nacional do Judiciário e estabeleceram as metas para 2014, é importante fazer algumas reflexões sobre os números e prazos a serem estipulados.

De 2009 até hoje os tribunais brasileiros, sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), têm realizado encontros para definir “Metas” de produção, que passam por estruturação interna (informatização e capacitação de servidores), produção (identificar e julgar processos distribuídos até certa data) e outros (uso de sistema bacenjud, criação de controle interno e planos estratégicos plurianuais aprovados pelos desembargadores).

Porém, esta geração anual de metas merece uma reflexão sobre o seu significado para atender ao cidadão, já que a dicotomia entre números e prazos está levando o Poder Judiciário para este tipo de dilema entre quantidade e qualidade. Embora não se despreze o valor que as técnicas de administração têm, é necessário refletir sobre o modo de produção destas metas.

Por isso a necessidade de discutir três temas fundamentais: [1] o procedimento de elaboração das metas; [2] a finalidade delas e [3] a quem devem servir.

[1] A primeira reflexão é sobre a forma de criação destas metas, hoje elaboradas unicamente pelas cúpulas dos tribunais. Há uma máxima da ciência da administração que diz que “sem envolvimento, não há comprometimento”. Isto é, para engajar pessoas numa ação, é conveniente e necessário integrá-las no processo de decisão que entendeu ser necessária aquela atividade. Não é por outro motivo que as formulações de planos estratégicos do mundo corporativo prevêem a participação dos colaboradores no estabelecimento das metas e projetos estratégicos a fim de que auxiliem na identificação dos problemas e na apresentação de alternativas de solução — e, com isso, envolvam-se no processo de gerar resultados positivos.

Não adianta, porém, chamar ao diálogo os tribunais, representados por seus presidentes, para decidirem sobre as metas e prioridades do Judiciário se estes formulam suas decisões sem ouvir os juízes de primeira instância. Isso porque, espalhados por todo o Brasil e fazendo audiências, são os juízes de primeiro grau que têm o contato direto com os problemas dos cidadãos. Somente assim poderão indicar, por exemplo, se o orçamento, que é um cobertor curto, será melhor aproveitado para novos equipamentos ou para reformar um Fórum com rachaduras — coisas que muitas vezes passam despercebidas dos grandes centros de decisão diante da distância geográfica existente.

Um exemplo histórico dos resultados de se os juízes que estão na linha de frente é o hoje conhecido “Conciliar é legal”, que nasceu dos problemas e soluções levantados com representantes dos Fóruns Nacionais dos Juizados Especiais estadual (Fonjaje) e federal (Fonajef), que, em 2005, participaram do evento promovido pelo CNJ: “I Encontro Nacional de Coordenadores dos Juizados Especiais – Estaduais e Federais”. Deste encontro, em que juízes federais e estaduais levantaram em conjunto a visão e a missão dos Juizados, foram realizadas reuniões no ano de 2006 em que, dentre outras iniciativas, surgiu o Movimento pela Conciliação e a atual campanha “Conciliar é legal”, para que, dentre outros objetivos, houvesse o apoio institucional do CNJ para vencer a resistência existente nos órgãos do Executivo Federal de realizar as conciliações já autorizadas pela Lei 10259/2001.

Outro exemplo exitoso é a realização pelos Tribunais Regionais do Trabalho das chamadas Semanas Institucionais, nas quais os juízes são convocados para um evento no qual são debatidos não apenas temas jurídicos, mas também administrativos e orçamentários. Nestas reuniões e nestes diálogos surgem soluções para problemas que afligem os jurisdicionados.

Por isso, é importante que o CNJ aprimore seu processo de formulação de metas convidando os Tribunais para a elaboração destas, mas também é fundamental que ele recomende ou indique a estes que promovam o debate com os juízes de primeiro grau, seja dentro da estrutura da nova Rede Colaborativa de Governança (instituída pela Portaria 138, 23 de agosto de 2013, da Presidência do CNJ), seja por uma reformulação da Resolução 70, CNJ, para deixar clara a necessidade de a participação de todos juízes.

[2] Uma segunda reflexão que se faz necessária é sobre a função das metas. Seriam elas um fim em si mesmo? Parece claro que não. Ou seja, não basta discutir se vai ser cumprido oitenta ou noventa por cento de uma meta ou se os processos a serem julgados são os distribuídos até o ano X ou Y. O que importa, mesmo, é identificar os motivos pelos quais não se consegue cumprir uma determinada meta para que estes obstáculos sejam removidos por reformas administrativas ou legislativas.

Houve casos, por exemplo, de processos criminais antigos, que não puderam ser julgados porque o réu estava foragido, com prisão preventiva decretada e o processo suspenso nos termos do artigo 366, do CPP, mas, sendo localizado poucos meses antes de encerrar o ano em que deveria ser julgado, impediram o cumprimento integral da meta. Assim, indaga-se: é mais importante saber que a meta não foi 100% cumprida ou dela tirar lições para que no futuro os processos tramitem mais rapidamente? Discutir medidas administrativas e legais que dêem solução é mais importante do que discutir se devem ser desconsiderados das metas de julgamento os processos de execução fiscal que não puderam ser encerrados por falta de pagamento de honorários de perito pela Fazenda Pública.

As metas tem que ter uma função clara: identificar os obstáculos administrativos, legais e processuais que impedem a realização do direito fundamental à duração razoável do processo. A importância da meta se dará, então, não porque foram burocraticamente cumpridas, mas sim porque permitirão identificar quais soluções são necessárias para que o cidadão tenha um Judiciário de qualidade.

Somente com este viés proativo é que, por exemplo, a meta 18 de 2013 (“julgar, até o fim de 2013, os processos contra a administração pública e de improbidade administrativa distribuídos ao Superior Tribunal de Justiça, à Justiça Federal e aos estados até 31 de dezembro de 2011”) - agora meta 4 para 2014, só poderá adquirir importância se permitir diagnosticar os motivos de eventual lentidão no julgamento. Independente do grau de cumprimento da meta, os seus frutos virão não apenas dos julgamentos, mas sim dos diagnósticos dos motivos que levaram ao não cumprimento total. Seria a falta de uma atuação do Ministério Público? Seriam entraves administrativos dos órgãos que foram vítimas? Dificuldade na citação dos réus? Falta de servidores? Excesso de processos na vara? Legislação processual sem poderes para exigir o cumprimento de medidas? Ausência de peritos ou verbas para pagamento de laudos técnicos no interior do país? Excesso de recursos? Falta de capacitação dos juízes e servidores? Ausência de especialização de varas por matéria? Prerrogativa de foro? Quais destes fatores são mais importantes?

Por isso, dentro de um cronograma de trabalho relacionado com as metas do Poder Judiciário deve haver uma etapa em que sejam convidados os juízes que não puderam cumprir as metas para apontarem quais foram os problemas que tiveram.

Afinal, não se pode ficar correndo para cumprir metas sem que estas não gerem ações estratégicas para vencer os obstáculos, sob pena de nos próximos vinte anos estarmos ainda discutindo qual percentual das metas e quais anos devem ser incluídos ou não, repetindo os mesmos problemas sem solução.

[3] Por fim, a terceira reflexão é sobre a quem devem servir as metas. Quem é o seu principal interessado? A resposta parece evidente: o cidadão. Logo, qual o sentido das metas no Poder Judiciário que obrigam realizar atos como uma produção em série de uma fábrica, sem que se tenha o tempo necessário para uma boa audiência de conciliação, uma boa sentença e que se aplique o melhor direito possível diante das peculiaridades de cada caso. Seremos tal e qual o personagem de Charlie Chaplin no filme “Tempos Modernos” no qual o operário é engolido pelas máquinas?

O juiz vocacionado, que fez uma faculdade esperando poder fazer Justiça, qualquer seja este conceito (Justiça Liberal ou Justiça Social), deseja poder dizer o Direito e pacificar uma relação social, uma relação de trabalho ou bem julgar uma causa criminal separando o inocente do culpado — para poder reparar a vítima.

Porém, diante da ausência de meios materiais, de tempo necessário e do excesso de processos, deverá ele se transformar num mero gestor ou num repetidor de soluções carimbadas?

O que vale mais, cinco audiências bem feitas durante uma tarde ou vinte feitas na correria apenas para cumprir metas? Será que o jurisdicionado ficaria contente com uma audiência na qual é feito um acordo que ele não entende? Será que gostaríamos de ir a um médico e sermos atendidos em cinco minutos por alguém que sequer olha nossos exames?

Decidir se alguém deve ser submetido ao cárcere exige muito cuidado e ponderação, que só podem ser alcançados com tempo para a adequada análise do caso. É necessário tempo para as audiências de conciliação entre cônjuges que se separam ou entre patrões e empregados. Ninguém que vai ao Judiciário gostaria de participar de uma audiência de cinco minutos, espremida no meio de outras dezenas porque há um prazo fixado de cima para baixo para que o juiz cumpra cegamente. O mesmo se diga para decisões sobre meio ambiente, direitos do consumidor etc. Todos estes processos exigem tomar em consideração os diversos lados da questão, ponderar sobre a melhor resposta possível à luz da Constituição, o que não é possível se o juiz tem sob a sua guarda milhares processos para processar e julgar.

Logicamente que o Judiciário tem que usar as ferramentas administrativas para melhor gerir seus recursos. É natural que, sem utilizar as modernas técnicas de gestão (como também não estão os demais Poderes do Estado Brasileiro), o Poder Judiciário, ao iniciar os seus debates, sinta a necessidade de fazê-lo em alto grau de cobrança, o que levou a uma primazia na exigência de um juiz administrador. Porém, o pêndulo entre o “juiz gestor” e o “juiz que faz justiça” tem que voltar para um ponto médio, pois, como já alertava Aristóteles, a virtude é um meio termo entre dois excessos.

Aliás, o relatório Justiça em Números de 2012 (ano base 2011) demonstra que houve um aumento de produtividade do Judiciário (7,7 %), mas o aumento ainda maior do número de demandas (8,8%)! Com isso, tendo a mesma estrutura e fazendo mais do mesmo, sujeitos a cobranças cada vez maiores, os juízes e servidores atingirão um ponto que, na Engenharia, seria chamado de fadiga de material, se é que isso já não está ocorrendo, dado o número crescente de lesões por esforço repetitivo atingindo os juízes e servidores integrantes do Judiciário.

Por fim, sobrevoando as reflexões apresentadas, é possível traçar algumas conclusões. A primeira é a de que o processo de elaboração das Metas Nacionais do Poder Judiciário deve envolver não apenas os Tribunais, mas também os juízes, servidores e cidadãos, para que elas reflitam, de fato, aquilo que é possível e necessário para uma Justiça de qualidade. Além disso, este envolvimento gerará metas mais condizentes com a situação real do Judiciário e um comprometimento no seu cumprimento, uma vez que aqueles que decidem em conjunto se sentem mais responsáveis pelo resultado.

A segunda é que as Metas não devem ser buscadas cegamente, pois não são um fim em si mesmo, mas sim um instrumento para identificar os obstáculos para a Justiça e, a partir deste diagnóstico, promover sugestões de ações administrativas e reformas legais que permitam a melhoria do serviço judiciário.

A terceira é que as Metas devem ir além da visão gerencial, dos meios, para buscar os fins, que são a promoção da paz social e a afirmação da Justiça como algo concreto para todos os cidadãos. A valorização do Judiciário é importante tanto para os juízes quanto para a instituição e para o cidadão, que depende do Estado-Juiz para cumprir as promessas dadas pela Constituição de 1988.

Por Vilian Bollmann,  é juiz federal em Lages (SC), mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí e autor dos livros Novo código civil: princípios, inovações na parte geral e direito intertemporal, Juizados Especiais Federais: comentários à legislação de regência, Hipótese de Incidência Previdenciária e temas conexos e Justiça e Previdência.

 

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