Em 2003, uma lei de
iniciativa do governo, devidamente aprovada pelo Congresso — a Lei 10.698 —
concedeu aumento de R$ 59,87 a todos os servidores públicos federais. Por um
desses excessos da imaginação humana, o que parecia uma decisão simples e
inquestionável se transformou numa questão jurídica até agora insolúvel
que produziu uma pilha de 30 mil processos que tramitam desde então, há quase
15 anos, na Justiça Federal. A mágica hermenêutica da multiplicação dos
processos começou com a interpretação de que ao dizer R$ 59,87 a lei na verdade
deveria aplicar um reajuste em porcentagem sobre o valor dos vencimentos de
cada servidor, calculado em exatos 13,23%.
Para se chegar a este percentual, o cálculo foi de que o
valor deveria ser o equivalente à fração que a chamada Vantagem Pecuniária
Individual (VPI) representava no menor salário do funcionalismo público federal,
que à época era de R$ 452,23. Nas ações, os servidores públicos federais
argumentam falta de paridade no pagamento da verba. Por exemplo, enquanto
a VPI representava 6% de aumento para quem ganhava R$ 1 mil, significava 0,18%
para quem ganhava R$ 33 mil, o teto do funcionalismo público. Ou seja, enquanto
o reajuste da base estacionava nos famigerados R$ 60, o da cúpula do
funcionalismo atingia R$ 4.360. De acordo com a Advocacia-Geral da União, uma
decisão final favorável aos servidores públicos traria um impacto de R$ 1,3
bilhão em gastos com o reajuste.
A encrenca se transformou em ação judicial que se
multiplicou até chegar à casa dos milhares por todos os cantos do país e
resultando em decisões díspares. De maio de 2016 a junho de 2017, 117 ações
tiveram decisões de segundo grau; 86 foram favoráveis ao reajuste de 13,23% e
31 foram contrárias. Levantamento feito pelo Anuário da Justiça mostrou
que, no último ano, nos Tribunais Regionais Federais das 1ª, 4ª e 5ª Regiões, a
maioria das decisões foi favorável aos servidores; enquanto nas 2ª e 3ª Regiões
foi reconhecido o aumento em valor fixo. Poucas das 30 mil ações foram julgadas
no mérito em segunda instância. Há ainda 270 casos em tramitação na Turma
Nacional de Uniformização e 40 no Superior Tribunal de Justiça.
No Supremo Tribunal Federal, os ministros são contrários
ao reajuste variável de 13,23%. Nas decisões, citam a Súmula 339 e a Súmula
Vinculante 37: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa,
aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.” Em
2012, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a Vantagem
Pecuniária Individual era, sim, reajuste geral, e por isso deveria ser
proporcional ao salário. Meses depois, a 2ª Turma do STF cassou a decisão,
afirmando ser inconstitucional a concessão de reajuste sem previsão em lei com
base no princípio da isonomia. O argumento da Advocacia-Geral da União é de que
“o reajuste de 13,23% não se confunde com a revisão geral anual, prevista no
artigo 37, da Constituição. Desta forma, como a concessão de tal reajuste pelo
Judiciário afrontaria a Súmula Vinculante 37”.
Em maio de 2017, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal, apresentou a Proposta de Súmula Vinculante 128, para
pacificar a questão. “É inconstitucional a concessão, por decisão
administrativa ou judicial, do chamado ‘reajuste de 13,23%’ aos servidores
públicos federais, ante a falta de fundamento legal na Lei 10.698/2003 e na Lei
13.317/2016”, diz o enunciado. Até o fechamento desta edição, a proposta ainda
não havia sido levada à votação na corte. Para Mendes, a concessão do reajuste
de 13,23% pelo Judiciário com base no princípio da isonomia, sem autorização
legal, afronta o princípio da legalidade, bem como a Súmula 339 e a Súmula
Vinculante 37 do STF.
Em junho de 2017, o Tribunal de Contas da União decidiu
anular as decisões administrativas do Judiciário e do Ministério
Público que transformaram a VPI em reajuste salarial. A corte também
determinou que se instaurassem processos administrativos para cobrar a
devolução dos valores, pagos indevidamente, segundo os ministros.
A tendência no Tribunal Federal da 5ª Região até o final
de 2016 era de dar decisões a favor da concessão do reajuste de 13,23%. A
partir deste momento, o Plenário da corte pacificou a questão, em sentido
contrário ao pleito dos servidores públicos. “A revisão geral e anual foi
concedida, no ano de 2003, pelo magro percentual de 1% pela Lei 10.697. A Lei
10.698, diploma seguinte ao da revisão geral, cuidou da instituição de vantagem
pecuniária individual aos servidores públicos. Não há como encarar a
instituição de uma vantagem pecuniária individual como revisão geral e anual”,
definiu o tribunal. Em 2017, as quatro turmas da corte passaram a aplicar este
entendimento.
Em sentido contrário, a Corte Especial do TRF-1 mantém a
concessão do reajuste desde março de 2015, quando foi julgada a arguição de
inconstitucionalidade da Lei 10.698/2003. “A Súmula Vinculante 37 do STF não
vem sendo aplicada nas hipóteses em que ocorra ofensa à Constituição Federal,
consumada com a concessão de reajustes diferenciados para os servidores
públicos. Além disso, dito preceito não pode servir como escudo para as
inconstitucionalidades praticadas pela administração, sendo certo que a própria
Corte Suprema descarta esse mau uso, como já o fez, por exemplo, nas
discussões relativas à extensão da GDAT e GDASST para os servidores inativos”,
justificou a relatora, desembargadora Neuza Alves.
A relatora ainda declarou inconstitucional o artigo 1º da
Lei 10.698/2003: “Fica instituída, a partir de 1º de maio de 2003, vantagem
pecuniária individual devida aos servidores públicos federais dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das autarquias e fundações
públicas federais, ocupantes de cargos efetivos ou empregos públicos, no valor
de R$ 59,87.” De acordo com dados da AGU, a 1ª Região concentra 82% dessas
ações, com quase 23 mil casos em tramitação.
Alguns desembargadores que votam a favor do reajuste na
segunda instância citam decisão do ministro Napoleão Maia, do STJ: “O reajuste
de 13,23% possui natureza jurídica de Revisão Geral Anual, devendo ser
estendido aos servidores públicos federais o índice de aproximadamente 13,23%,
decorrente do percentual mais benéfico proveniente do aumento impróprio
instituído pelas Leis 10.697/2003 e 10.698/2003”, como no Agravo Regimental
1.335.439/RS, de dezembro de 2016. Entretanto, o ministro teve uma mudança de
posicionamento no julgamento de embargos de declaração em junho de 2017 e passou
a citar a Súmula 37 do STF, negando o aumento nos Embargos de Declaração 1.293.208/RS.
No STJ, o ministro Gurgel de Faria admitiu o processamento
de pedido de uniformização de interpretação de lei (PUIL 60/ RN). Com isso, no
âmbito das turmas recursais dos Juizados Especiais Federais, casos similares
estão suspensos, conforme a Lei 10.259/2001, artigo 14, parágrafo 6º. O
ministro destacou que, no âmbito dos JEFs, o pedido de uniformização é o
mecanismo para submissão das decisões das turmas recursais à análise do STJ,
nas hipóteses em que a decisão contrariar a jurisprudência dominante ou súmula
do tribunal.
Ibaneis Rocha, advogado de sindicatos de servidores do
Judiciário e do Legislativo, defende o reajuste de 13,23%. Para ele, o artigo
6º da Lei 13.317/2016 transformou a Vantagem Pecuniária Individual em “reajuste
geral”: “A vantagem pecuniária individual, instituída pela Lei 10.698, e outras
parcelas que tenham por origem a citada vantagem concedidas por decisão
administrativa ou judicial, incidentes sobre os cargos efetivos e em comissão
de que trata esta Lei, ficam absorvidas a partir da implementação dos novos
valores constantes.” Para Ibaneis, se é fato que a VPI, em 2003, era um
pagamento eventual, a lei de 2016 encerrou o assunto.
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Com informações da Conjur